Transformações no Ensino Superior e interdição ao marxismo (Anos 1980)

Las transformaciones en la Educación Superior y la interdicción al marxismo (1980's)

Transformations in Higher Education and interdiction to Marxism (1980's)

Claudia Wasserman[1]

Recibido: 29-09-2014 Aceptado: 05-10-2014

 

Voltar ao Brasil depois de aproximadamente quinze anos vivendo no exílio foi uma experiência dolorosa para todos os que tiveram que deixar o país depois de 1964[2]. Os exilados intelectuais brasileiros, em geral muito bem acolhidos nas universidades mexicanas, chilenas, norte-americanas e europeias, tiveram um estranhamento ainda maior. A mudança nos ambientes profissionais e na cultura política do Brasil era evidente e correspondia às transformações ocorridas no âmbito internacional e interno.

O objetivo deste artigo é analisar o retorno dos intelectuais exilados ao Brasil nos anos 1980 e as transformações nos ambientes culturais e acadêmicos no período, com destaque para as Universidades. Procura registrar as transformações no ensino superior, a interdição ao marxismo após a queda do socialismo e as dificuldades de readaptação dos intelectuais, com base nas experiências de Vânia Bambirra, Ruy Mauro Marini e Theotônio dos Santos.

Os intelectuais brasileiros que, por motivos político-ideológicos, deixaram o país depois do golpe de 1964, puderam retornar após a promulgação da Lei da Anistia de 28 de agosto de 1979[3]. Os primeiros exilados célebres a retornar ao país foram Leonel de Moura Brizola, ex-governador do Rio Grande do Sul, e Miguel Arraes, ex-governador de Pernambuco. Brizola entrou no Brasil por Foz do Iguaçu no dia 06 de setembro de 1979 e falou pouco, deixando claro que aqueles que o seguissem no retorno ao Brasil deveriam ter “cautela, paciência e prudência” (site do Partido Democrático Trabalhista, PDT, acesso em março de 2014). Era o primeiro sinal de que se abria no país um período de conciliação nacional prudentemente articulado pelas forças conservadoras para impedir a crítica ao período anterior.

Em dezembro de 1979, Ruy Mauro Marini fez sua primeira viagem de retorno depois da anistia, mas a volta definitiva ocorreria somente em meados de 1984. Theotônio dos Santos retornou em janeiro de 1980, e Vânia Bambirra, depois de cumprir alguns compromissos internacionais junto com Herbert de Souza, retornou em março do mesmo ano.

Para as nossas personagens e para todo o universo da esquerda, o panorama era de cautela e de reconhecimento da situação do país, fase de lenta e gradual reinsersão, depois de tão prolongada ausência. Afinal, foram cerca de quatorze ou quinze anos sem pisar na terra natal, sem saber exatamente o quanto tinham sido transformados os costumes, a cultura do país, e também não estavam exatamente cientes de quais eram os critérios atuais de excelência nos ambientes acadêmicos e profissionais que eles haviam frequentado antes da ditadura.


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Daniel Aarão (2006), em um capítulo do livro “Intelectuais: sociedade e política” refere-se ao problema do retorno do exílio. Na apresentação parcial dos resultados das entrevistas realizadas com Vera Sílvia Araújo Magalhães, militante considerada pelo autor como emblema desta geração, Aarão destaca a participação política e intelectual de quem, assim como os intelectuais desse estudo, esteve “na linha de frente” da rebeldia dos anos 1960; sofreu o “exílio de amarguras, dúvidas e desesperos,  como sempre, mas também de muita criatividade”; e voltou ao país com a anistia: “um país outro, transformado pelos anos de ditadura, outras gentes, outras expectativas, diferentes circunstâncias internacionais”.

Utilizando como exemplo a história de Albert Camus do livro “O Estrangeiro”, Reis ressalta que “Vera sentiu-se estranha. Uma étrangeté que, a rigor, a perseguia há longo tempo” (p.246,247). Segundo Aarão, Étrangeté se refere ao estranhamento: “Estar sem estar, estar de um modo desconfortável, como se estivesse fora do lugar onde deveria estar, e, no entanto, o lugar é este mesmo onde se está, muito familiar, o que não quer dizer que seja amigável, ou acolhedor, apenas familiar, e, súbito, a percepção de uma difícil inserção...” (p.252).

O retorno ao Brasil evidenciava o descompasso, o estranhamento e condicionava um retorno ao passado; levava a um questionamento dos motivos que induziram à saída do país: “... na volta ao país... no reencontro... , quando se tornou imperioso o aggiornamento, a estranheza apareceu em todo o seu esplendor, e em todo o seu desconforto, iluminando as raízes da rebeldia, no passado longínquo, evidenciando as razões profundas da inadaptação do exílio, e os descompassos inevitáveis que acompanhariam sua trajetória...” (Reis, 2006: p.252).

No retorno ao Brasil, Theotônio, Bambirra e Marini compreenderam mais uma vez e com maior intensidade que haviam sido derrotados, política e intelectualmente. A readaptação no retorno ao país chegou a ser mais difícil do que a adaptação aos ambientes chileno e mexicano. Além dos problemas de ordem pessoal, familiares[4], a inadaptação e o estranhamento ocorreram porque eles encontraram outra Universidade, outros partidos, uma nova cultura política, e tiveram que lidar com uma mesma disputa teórica acerca do desenvolvimento do capitalismo brasileiro na qual eles já haviam sido derrotados.

As universidades, os centros de pesquisa e a imprensa (jornais e revistas) foram nos anos 1980, após a anistia, os lugares de recepção mais corriqueiros aos intelectuais brasileiros exilados após o golpe de 1964 ou que haviam sido impedidos de exercer seu ofício pela ditadura.

Ruy Mauro Marini retornou ao Brasil, pela primeira vez após a anistia em dezembro de 1979, mas continuava vinculado a UNAM. Em 1982, durante uma visita ao Brasil, foi preso por três dias. Visitou novamente o país no final de 1983 e no princípio de 1984. No segundo semestre de 1984, voltou para ficar. Assumiu então a direção de um suplemento especial no “Jornal do País”, onde escreveu sobre os mais variados temas da realidade brasileira. O periódico quinzenal entrou em crise no mesmo ano. Com Neiva Moreira[5] editou, entre 1985 e 1986 uma revista trimestral, Terra Firme. Com Emir Sader e José Aníbal Peres de Pontes tentou criar uma revista teórica, sem êxito.

Theotônio dos Santos voltou em 1979 ao Brasil e participou de projetos de pesquisa, um dos quais em colaboração com Pablo Gonzáles Casanova. Participou na comissão consultiva de um projeto dirigido por Amilcar Herrera da Universidade de Campinas. E colaborou com pesquisa organizada por Abdel Malek sobre as grandes transformações no mundo contemporâneo. Todos esses projetos eram ligados à Universidade das Nações Unidas (UNU)[6]. Theotônio ainda participou, no começo dos anos 1980, como consultor de um projeto da UNU, sobre pesquisas para a paz, que pretendia analisar perspectivas geopolíticas e estratégicas do mundo contemporâneo.

Vânia Bambirra voltou para o Brasil em 1980 e somente em 1984 foi convidada por Darcy Ribeiro, então vice-governador do Estado do Rio de Janeiro, para trabalhar na FAPERJ (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro). Foi designada para desenvolver pesquisa sobre as principais calamidades do Estado do Rio de Janeiro e definir as prioridades de intervenção do poder público. Segundo ela, “o projeto foi engavetado” (Memorial, 1991, 37), devido à negligência dos demais envolvidos. Também foi funcionária da Superintendência de Desenvolvimento Social na Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, o que lhe permitiu refletir sobre a situação das favelas. Posteriormente, foi nomeada Diretora Geral do Fundo Rio, onde elaborou projeto de captação de recursos internacionais para “creches comunitárias”, além de um Plano de Classificação de Cargos para o órgão. De volta à FAPERJ, colaborava na seleção de pessoal para os Centros Integrais de Escolas Públicas (CIEPs).

Apesar desse mosaico de experiências e ocupações, muitas das quais obtidas graças aos contatos políticos ou através de amigos companheiros do exílio, Marini, Theotônio e Vânia eram, sobretudo, professores universitários. Essa fora a atividade principal de todas as suas trajetórias. Haviam saído do Brasil como docentes expulsos da UnB, e tinham conseguido ocupação semelhante nos países do exílio, além de serem intelectuais com reconhecimento internacional e que, ao longo do exílio, atuaram e publicaram livros e artigos em países da América Latina, Europa e nos Estados Unidos. No retorno ao Brasil tiveram bastante dificuldade em retomar a carreira acadêmica. As primeiras tentativas de reintegração foram trágicas, pois a universidade no Brasil havia se modificado enormemente.

Segundo Martins (1987), a consolidação das universidades brasileiras nos anos 1930/40 teve como correlato o surgimento de uma intelligentsia, destinada a estruturar o campo cultural, através da criação de instituições modernas, que se constituiriam nos locais para fundação, reconhecimento e expansão de sua identidade social, e mesmo de sua missão na sociedade (p.79). A Universidade de São Paulo (USP), criada em 1934, e a Universidade do Distrito Federal (UDF), criada em 1935, eram exemplos dessa preocupação em representar a intelectualidade brasileira, os altos estudos e o desenvolvimento da pesquisa (Mendonça, 2000, p.139-140).


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Desde então, discute-se a autonomia das universidades e o grau de intervenção do Estado nessas instituições e em todo o campo cultural. A tentativa de tutelar o ensino superior por parte de governos autoritários, como foi o caso do Estado Novo (1937-1945)[7], procurava garantir o controle sobre os intelectuais e suas atividades políticas.

Passado o período autoritário e com a crescente industrialização, os anos 1950-1960 viram crescer o número de universidades brasileiras (de cinco em 1945 para 37 em 1964) e a quantidade de alunos matriculados (236,7%)[8]. O processo de federalização de faculdades estaduais ou particulares e a reunião de escolas profissionalizantes e sua transformação em universidades católicas foram a base desse crescimento. O crescimento veio acompanhado da modernização, com a criação de diversas instituições de apoio aos altos estudos, à pesquisa e ao desenvolvimento tecnológico, tais como a Sociedade Brasileira para o progresso da Ciência (SBPC), em 1948, a Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de nível Superior (CAPES) e o Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), ambos em 1951.

 No contexto de crescimento do ensino superior do Brasil, entre os anos 1950 e 1960, discutia-se a necessidade de uma Reforma Universitária na qual as Faculdades de Filosofia teriam um papel central, seja como instituições de pesquisa, seja como órgão integrador e articulador das diferentes unidades (Mendonça, 2000, p.144). A UnB, fundada em 1961, representava a culminância desse processo de inovação e de autonomização das instituições de ensino superior no Brasil. Segundo Ana Waleska Mendonça (2000), os professores da UnB “... foram recrutados entre o que havia de melhor no Brasil. Esses professores eram atraídos em grande parte pela mística que se constituiu em torno da Universidade” (p.144-145).

A autonomia universitária e a democratização do ensino superior conduzidos pelo projeto idealizado por Anísio Teixeira serviam de base para os debates sobre a Reforma Universitária, informados igualmente pela radicalização das esquerdas em torno das Reformas de Base.

O golpe de 1964 reverteu todos esses projetos; iniciou com a intervenção na universidade, expurgos de docentes, repressão ao movimento estudantil e contenção do debate sobre as reformas. A Reforma Universitária de 1968, empreendida pelo governo autoritário, bloqueou as pretensões autonomistas do movimento de docentes e discentes, mas, de outro lado, promoveu a modernização das instituições públicas mais ou menos nos moldes em que estava sendo pensado no período anterior à implantação do regime autoritário. Uma diferença, entretanto, sobressaia. Além da relativização da autonomia, a universidade sob a égide da ditadura cresceu mais tecnicista, as chamadas ciências duras tiveram atenção redobrada e as antigas Faculdades de Filosofia tiveram sua importância diminuída. Essas últimas também foram vítimas da fragmentação em diferentes escolas e institutos, o que red  uziu ainda mais as chances de serem elas o núcleo integrador de uma proposta humanista.

Outro impacto provocado pela política da ditadura em relação às universidades foi a permissividade de concessões de funcionamento a instituições privadas de ensino superior, que se multiplicaram em uma velocidade impressionantemente maior do que as públicas. Criou-se, com isso, uma diferenciação de qualidade no ensino superior brasileiro, sua massificação e a mercadorização dos diplomas, fatos verificáveis até hoje. Os sistemas de financiamento do ensino superior também sofreram transformações durante a ditadura e favoreceram o aparecimento e consolidação de grupos de ensino e de elites acadêmicas estribadas na repartição desses recursos.

De acordo com Mendonça (2000), a autonomia foi ferida em sua base porque “... o controle centralizado dos recursos materiais e financeiros pelo governo federal acabou por atrelar o seu funcionamento às políticas governamentais” (p.148).

Marini faz referência ao papel desempenhado pela política cultural da ditadura no padrão imposto aos intelectuais brasileiros. Segundo ele, “Essa política teria resultado, porém, menos exitosa se mais e mais intelectuais não houvessem sido cooptados pelo sistema, inclusive aqueles que se situavam em oposição ao regime. Ocorreu no país um fenômeno curioso: intelectuais de esquerda, que chegavam a ocupar posições em centros acadêmicos, ou que os criavam com o fim precípuo de ocupar posições, estabeleciam à sua volta uma rede de proteção contra o assédio da ditadura e utilizavam sua influência sobre a destinação de verbas e de bolsas para consolidar o que haviam conquistado, atuando com base em critérios sumamente grupais. Entretanto, o que aparecia, originalmente, como autodefesa e solidariedade tornou-se, com o correr do tempo... uma vocação irresistível para o corporativismo, a cumplicidade e o desejo de exclusão de todo aquele... que ameaçasse o poder das pessoas e grupos beneficiários desse processo... resultava proveitoso... monopolizar e personalizar as ideias que floresciam na vida intelectual da região, adequando-as previamente aos limites estabelecidos pela ditadura. Neste contexto, a maioria da intelectualidade brasileira de esquerda colaborou, de maneira mais ou menos consciente, com a política oficial, fechando o caminho à difusão dos temas que agitaram a esquerda latino-americana na década de 1970...” (Memória, 1991, p.37).

A respeito dessa visão de Ruy Mauro Marini sobre o processo de cooptação dos intelectuais de esquerda no período da ditadura, não resisto citar Celso Furtado em entrevista concedida à Aspásia Camargo e Maria Andréa Loyola (2002): “Se tivesse de, em poucas linhas, traçar o retrato típico do intelectual nos nossos países subdesenvolvidos, eu diria que ele reúne em si 90% de malabarista e 10% de santo. Assim, a probabilidade de que se corrompa... é de nove em 10. Se escapa à regra, será implacavelmente perseguido...” (p.36).

Ainda segundo Marini, “... desde o golpe chileno de 1974, a socialdemocracia europeia passou a atuar no cenário intelectual latino-americano, no que fora precedida pelas fundações de pesquisa norte-americanas e acompanhada pelas instituições culturais financiadas pelas igrejas e pela democracia cristã. No Brasil e no resto da América Latina, a disputa pela obtenção dos recursos daí advindos reconstituiu a elite intelectual sobre bases totalmente novas, sem qualquer relação com as que – fundadas na radicalização política e na ascensão dos movimentos de massas – a haviam sustentado na década de 1960.” (Memória, 1991, p.38).


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De fato, a reintegração de Marini na Universidade de Brasília, solicitada desde 1979, só foi concluída em 1987, graças à intervenção do então reitor Cristóvão Buarque e da professora do Departamento de História, Geralda Dias. Antes disso, em 1984, foi professor da Fundação Escola de Serviço Público do Rio de Janeiro (FESP), então dirigida por Theotônio dos Santos, onde Marini tentou criar um curso de graduação em administração pública, que foi inviabilizado “... por falta de recursos, e... devido à derrota de Darcy Ribeiro nas eleições para governador do Rio.” (Idem, p.39). Foi demitido da FESP em 1986, como resultado imediato das eleições estaduais.

Ainda por incentivo de Darcy Ribeiro, Ruy  Mauro procurou criar um centro de estudos nacionais na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), mas, segundo ele, “A resistência oposta pela universidade levou... o projeto ao fracasso, tendo ela conseguido manter-se intocável durante toda a gestão de Brizola.” (Memória, 1991, p.38).

No início dos anos 1980, logo depois do retorno ao Brasil, Theotônio e Vânia foram seduzidos por um convite do Departamento de Economia da Universidade Católica de Belo Horizonte para elaboração de um projeto de pós-graduação. Conseguiram um convênio com a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO). Foram homenageados pelos estudantes de graduação e participavam ativamente da vida acadêmica. De acordo com Bambirra, “... Rompiam-se preconceitos e tabus. As palavras socialismo e comunismo, por exemplo, iam-se transformando em conceitos científicos, deixando de serem refrãos subversivos. Era bonito... foi se gestando um clima de agitação intelectual, que explicará em parte o desfecho dessa experiência” (Memorial, 1991, p.33).

Essa experiência terminou sem explicação plausível. Para Bambirra “Uma experiência de surrealismo acadêmico”. O programa de pós-graduação fora cancelado, ainda segundo ela por razões políticas. (idem, p.34). Theotônio e Vânia, desempregados, foram então indicados por Moniz Bandeira para criar e implantar curso de pós-graduação no Instituto Bennett de Ensino, no Rio de Janeiro, para onde viajavam regularmente. Esse projeto, todavia, não foi adiante. Theotônio descreve assim esse momento: “A anistia política de 1979 trouxe-me de volta ao Brasil. Aqui não encontrei a mesma solidariedade que obtive junto aos povos irmãos do Chile e do México. A ditadura ainda dominava o ambiente acadêmico brasileiro e só pude obter posições instáveis como bolsista do CNPq ou em cargos acadêmicos temporários, como professor da PUC de Belo Horizonte e do Instituto Bennett...” (Memorial, 1994, p.4).

No Rio de Janeiro, Theotônio foi convidado para ocupar o cargo de “Diretor de Treinamento” da Fundação Escola de Serviço Público do Rio de Janeiro (FESP), onde realizou pesquisas e diversos seminários, atuando junto com Vânia Bambirra e Ruy Mauro Marini. Isso foi entre 1983 e 1986. Da mesma forma que Marini, Theotônio sofreu as consequências do fracasso eleitoral de Darcy Ribeiro ao governo estadual em 1986 e foi demitido. Em 1985, Theotônio dos Santos prestou concurso para professor titular da Faculdade de Ciências Económicas da Universidade Federal de Minas Gerais, onde permaneceu com vínculo até 1988. Foi reintegrado à Universidade de Brasília em 1987 e aposentou-se em 1992, imediatamente foi convidado para atuar como professor visitante no Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Dos três intelectuais desse estudo, apenas Vânia Bambirra possuí o título de Doutor em Economia pela UNAM (1987), obtido no mesmo ano em que ela foi reintegrada à UnB. Theotônio dos Santos recebeu dois títulos de Doutor Honoris Causa, da UFMG e da UFF, após o retorno ao Brasil. Marini estava cursando o doutorado em 1964, quando a UnB foi invadida e ele passou a ser perseguido pela ditadura. Nunca terminou o trabalho que era sobre o “Bonapartismo no Brasil”. Mesmo assim, no México, orientou quatro dissertações de Mestrado e cinco teses de Doutorado. Vânia Bambirra explica essa situação da seguinte maneira: “Devo destacar que foi um único fator que me motivou a fazer o curso formal de doutorado, no final dos anos setenta: a perspectiva da anistia e da volta para o Brasil e, só por isso, minha pesquisa se transmutou em tese. Fora daqui, em muitas outras latitudes como aquelas que eu vivi, ele era absolutamente prescindível. No México, eu era professora de mestrado e doutorado, sem possuir título de pós-graduação. No exterior, meus títulos eram minhas publicações.” (Memorial, 1991, p.28).

Ainda sobre as dificuldades de reinserção nos ambientes acadêmicos brasileiros, Vânia Bambirra foi reprovada em um concurso no Departamento de História da UFF, ocorrido em 1985, para professor auxiliar em História da América, apesar do currículo e de toda a produção intelectual que ela tinha na área. Considerou a “experiência vexatória... o único revés até hoje sofrido na... carreira acadêmica”. (Memorial, 1991, p.37). Vânia, questionada sobre os motivos desse “revés”, falou das dificuldades de escrever em português depois de tantos anos fora do Brasil, e ainda considerou que “não encontrou qualquer ambiente na academia, porque as portas estavam fechadas todas... porque a gente era marxista, marxista e leninista, havia um anti-leninismo em particular que acabava virando anti-marxismo, porque o Lênin se confunde com o marxismo, eu me lembro de que nós voltamos ao Brasil na época do auge do eurocomunismo, e veja bem, quem morreu não foi o Lênin, foram os eurocomunistas”. (entrevista concedida a Claudia Wasserman, em Porto Alegre, em 05 de dezembro de 2012).

A dificuldade de reintegração dos exilados aos ambientes acadêmicos esteve, portanto, relacionada às transformações sofridas pelo ensino superior no Brasil naquele período, à adaptação das elites acadêmicas ao regime autoritário, à cooptação de intelectuais de esquerda através do financiamento de pesquisas, de bolsas e aos sistemas de promoção na carreira universitária.

Mas, também, como fez referência Vânia Bambirra, houve um óbice a certo tipo de pensamento dentro da universidade. No entanto, talvez seja uma simplificação de sua parte dizer que a interdição era relativa ao marxismo propriamente dito. Em verdade, houve uma crise mais generalizada no âmbito das ciências sociais e humanidades. Uma crise epistemológica que se abateu sobre historiadores, sociólogos, economistas, cientistas políticos etc. e que derrubou a confiança no paradigma da modernidade. Movidos pelo contexto de insurreição social dos anos 1970, intelectuais europeus – sobretudo, franceses, espanhóis e italianos – passaram a recusar os fundamentos racionalistas que davam sustentação às teorias do conhecimento social. Rejeitavam as meta-narrativas, a noção de totalidade e a crença no progresso. Essa reviravolta na forma de pensar, fortemente influenciada pelo filosofo francês Michael Foucault, propunha a relativização da razão e a fragmentação do conhecimento[9].


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Para Fontana (2004), ocorreu o que ele denominou “crise da ciência histórica”, “reflexo de outra crise mais profunda: a das expectativas de futuro que baseávamos numa concepção da história que parecia permitir-nos fazer previsões sobre o porvir” (p. 268), ou o que Anderson (1984) classificou como “descenso abrupto do materialismo histórico como cultura ativa e produtiva na França e na Itália” (p. 37).

Ainda que Anderson tenha relativizado o “descenso”, limitando-o ao espaço intelectual da França, Itália e Espanha, a maioria dos cientistas sociais latino-americanos optou pela adesão ao pós-estruturalismo, representado por Foucault, Derrida, Deleuze. O rechaço às periodizações, às interpretações globais e à primazia das análises econômico-sociais deu lugar à análise do discurso, do cotidiano, das mentalidades e ao predomínio dos estudos culturais. Ao mesmo tempo, do ponto de vista político configurou-se a crítica ao socialismo real, a reação às revelações de Kruschev, a adesão ao maoísmo e, um pouco mais tarde, o alinhamento com o eurocomunismo. Ainda de acordo com Anderson (1984) foi “frequente uma evolução do maoísmo para o eurocomunismo, mediada pela rejeição veemente, comum a ambos, da experiência soviética” (p. 87).

Esse contexto influenciou diretamente os intelectuais sul-americanos preocupados e comprometidos com os processos de redemocratização em meados dos anos 1980. Influenciada pelo eurocomunismo e pela rejeição ao autoritarismo soviético, uma parte da intelectualidade brasileira e latino-americana também se afastou do materialismo histórico e procurou limitar o predomínio que o marxismo desfrutava anteriormente nos meios universitários das humanidades e ciências sociais.

Theotônio dos Santos também se refere ao óbice as suas ideias no ambiente cultural acima contextualizado: “Essas divergências foram manifestadas, sobretudo, no artigo de Fernando Henrique Cardoso e José Serra de crítica ao pensamento de Rui Mauro Marini ... Este artigo terminava inclusive com uma afirmação muito dura de que era preciso fechar à chave estas ideias para que não penetrassem na juventude brasileira. Era uma reação à influência que havia alcançado nosso pensamento a nível internacional quando já se identificava uma escola própria dentro da teoria da dependência em que Ruy Mauro Marini, Vania Bambirra e eu éramos considerados como as figuras mais destacadas e onde se tinha uma visão profunda dos limites de uma economia dependente para conduzir o nosso país ao desenvolvimento e à democracia. Essa visão crítica que representávamos não soava bem num Brasil que queria se democratizar sem transformar a sua estrutura econômica e social e que, portanto, tentava um projeto de democracia extremamente limitada ao plano político e ao plano do reconhecimento formal da cidadania de um povo de famintos e analfabetos. Nossa visão sobre os limites de um desenvolvimento dependente, sobre suas tendências concentradoras e marginalizadoras, sobre o impacto social deste tipo de desenvolvimento, soavam como uma voz distoante. Esta talvez tenha sido a razão principal pela qual encontrei, na volta ao Brasil, extremas restrições para a minha rearticulação dentro da realidade brasileira.” (Memorial: 1994, p.60).

No artigo “As desventuras da dialética da dependência”, de Fernando Henrique e José Serra (1978), os autores criticam as teses de Rui Mauro Marini. Embora eu não tenha identificado a passagem aludida por Theotônio dos Santos de “que era preciso fechar à chave estas ideias para que não penetrassem na juventude brasileira”[10], ficou claro ao longo do texto a aversão dos autores cebrapianos às tentativas de Marini em demonstrar que “o dilema fascismo ou socialismo (colocado por Teotônio dos Santos entre outros) era teoricamente sustentável, na medida em que superexploração requer a repressão e condiciona o desenvolvimento capitalista a moldes socialmente restritivos, os quais só poderiam ser rompidos através da Revolução Socialista.” (p. 4). Cardoso e Serra advertem que não rejeitam “no plano valorativo a validade da alternativa socialista”, porém o texto em questão insiste em demonstrar o contrário. Na mesma medida, salientam que Marini aplica “mal, equivocadamente ou pobremente” o arsenal marxista, o qual os autores parecem igualmente desdenhar.

Provavelmente diante desse tipo de crítica, Marini escreveu em seu memorial: “a intervenção nas universidades, que expulsou professores e alunos, mutilou os planos de estudo e, através da privatização, degradou até o limite a qualidade do ensino; e a destinação de gordas verbas para a pesquisa e a pós-graduação, implicando novos critérios para a seleção de temas e o direcionamento das bolsas de estudo para os Estados Unidos e alguns centros europeus. A análise da política cultural da ditadura, iniciada com os acordos MEC-USAID, e de suas consequências ainda está por ser feita, representando um ajuste de contas indispensável para que o Brasil possa descobrir sua verdadeira identidade.” (Memória: 1991, p. 37).

A interdição experimentada pelos intelectuais marxistas em meados dos anos 1980 e início dos anos 1990 nas Universidades, centros de pesquisa e outras instituições acadêmicas foi, portanto, consistente, deliberada e dizia respeito à crise do marxismo, de um lado, e aos diferentes projetos de redemocratização, de outro. Nos anos 1980, os lugares de sociabilidade da intelectualidade e dos artistas, que existiam antes dos golpes, tinham se modificado. O ambiente das revistas culturais e políticas que existiam antes da implantação das ditaduras e as universidades já não eram mais os mesmos.

A queda do socialismo abalara de modo incontornável os meios intelectuais de esquerda. Postulava-se, no período de redemocratização, que os intelectuais e artistas devessem seguir um padrão mais autônomo, independente e democrático. A arte engajada cedeu espaço à valorização da estética pura; a intelectualidade comprometida com causas sociais deu lugar a intelectuais comprometidos com causas mais difusas ou muito particulares. Mudaram as instituições, transformaram-se os contextos políticos e mudaram os intelectuais e artistas.

Geoff Eley (2005) alude às “agonias da epistemologia”, “frustrações da teoria” (p. 15). Uma nova realidade, determinada pela derrota das convicções da esquerda dos anos 1960, vem acompanhada de novas exigências nos espaços profissionais ocupados pelos intelectuais. O processo de recolocação de intelectuais e artistas nessa nova realidade esteve influenciado, portanto, por esses novos valores, hierarquias e necessidades.

O desprezo quase generalizado pela via insurrecional no novo contexto cultural latino-americano e o retorno do pluripartidarismo no Brasil levou Theotônio dos Santos, Vânia Bambira e Rui Mauro Marini de volta à militância político-partidária, outro fator a ser considerado em suas trajetórias depois do retorno do exílio.



Notas:

[1] Professor Associado Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Pesquisador CNPq.

[2] Para exemplificar as dificuldades encontradas pelos exilados menciono os trabalhos de Denise Rollemberg (1999) e de Jorge Christian Fernández (2011).

[3] Lei da anistia é o nome popular da lei n° 6.683, que foi promulgada pelo presidente Figueiredo em de 28 de agosto de 1979, ainda durante a ditadura militar. A lei estabelece: Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre dois de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares. § 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política. In http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6683compilada.htm (Site do Palácio do Planalto)

[4] “Os filhos de Theotônio dos Santos e Vânia Bambirra, às vésperas da anistia, não queriam deixar o México. E é em espanhol que Nádia, aos 14 anos, tendo saído do país no primeiro ano de vida, se justificava: ‘porque suemos mas mexicanos que brasileños. Nunca vivi en Brasil” – Rollemberg, 1999, p. 275. Em seu Memorial, Bambirra se refere a essa disposição dos filhos da seguinte maneira: “Nunca duvidamos de que, logo que fosse possível, voltaríamos para o Brasil, apesar da restrição dos filhos: ‘nós não estamos voltando, estamos indo’.” (Memorial, 1991, 32).

[5] Jornalista, Deputado Estadual e Federal, fundador do PDT e fundador de vários órgãos de imprensa, dentre os quais os Cuadernos del Tercer Mundo, fundado no exílio com jornalistas uruguaios e argentinos.

[6] Fundada em 1973, ligada à Organização das Nações Unidas (ONU), a UNU é composta por Centros e Programas de Pesquisa e Formação em diversas partes do mundo, mas não confere títulos.

[7] A UDF sofreu expurgos após 1935 até ser incorporada a Universidade do Brasil (UB), fundada em 1937 por Gustavo Capanema, ministro da Educação de Getúlio Vargas entre 1934 e 1945.

[8] Dados extraídos de Mendonça, 2000, 141-142.

[9] De acordo com Astor Antônio Diehl (1993), “... a Modernidade foi identificada pelo progresso, pela ciência, pela revolução, pela verdade etc., enquanto que os pós-modernos valorizam o particular, o fragmentário, o efêmero, o corpo, o microscópicos, rejeitando as grandes sínteses pelo conhecimento das causas primeiras, atacando o próprio sentido da história.” (22).

[10] Encontrei na p. 3 a seguinte afirmação: “Oxalá possamos nesse artigo, senão propor alternativas (que seria pedir muito), pelo menos colocar trancas que fechem falsas saídas”. A “falsa saída” que os autores se referem é certamente o socialismo.

 

Bibliografia:

ANDERSON, Perry. A crise da crise do marxismo. Introdução a um debate contemporâneo. São Paulo: Brasiliense: 1984.

CAMARGO, Aspásia & LOYOLA, Maria Andréa. Celso Furtado. Coleção Pensamento Contemporâneo. Rio de Janeiro: UERJ, 2002, volume 3.

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Cómo citar este artículo:

WASSERMAN, Claudia, (2014) “Transformações no Ensino Superior e interdição ao marxismo (Anos 1980)”, Pacarina del Sur [En línea], año 5, núm. 21, octubre-diciembre, 2014. ISSN: 2007-2309.

Consultado el Viernes, 29 de Marzo de 2024.

Disponible en Internet: www.pacarinadelsur.comindex.php?option=com_content&view=article&id=1029&catid=49