Biocapital, indocumentação e experiência de classe na fronteira uruguaio-brasileira

Biocapital, undocumentation and class experience
in the Uruguayan-Brazilian border

Biocapital, indocumentación y experiencia de clase
en la frontera uruguayo-brasileña

Alex Martins Moraes

RECIBIDO: 18-11-2013 ACEPTADO: 19-12-2013

 

 (a vida que se esvai no estuário do Prata)

Ferreira Gular

Dentro da noite veloz

Introdução

Entre os anos de 2011 e 2012 desenvolvi trabalho de campo em duas localidades situadas nas imediações da fronteira uruguaio-brasileira: Aceguá (BR)-Aceguá (UY) e Villa Isidoro Noblía1. Villa Noblía encontra-se a doze quilômetros da fronteira, no interior do território uruguaio, ao passo que Aceguá-Aceguá consistem em dois núcleos urbanos entrelaçados através da divisa política, constituindo o que, a partir da consolidação do Mercado Comum do Sul, se conveio em chamar “cidades gêmeas”.

            Meu foco de interesse ao longo desta investigação assentou-se nas articulações entre trabalho, deslocamento e indocumentação, bem como sobre sua incidência no que se refere ao acesso das classes populares às políticas públicas e aos serviços do Estado (tanto brasileiro como uruguaio) disponíveis nas zonas fronteiriças. Ao longo de minha análise procurei demonstrar como diferentes experiências de trabalho e deslocamento são matizadas pela presença das instituições estatais, pelo controle das divisas políticas e pela operatória local das clivagens de classe, conduzindo a situações de “margem”, nas quais os sujeitos precisam negociar permanentemente suas possibilidades de acesso à cidadania (cf. Moraes, 2013).

            Pensar em termos de “margens” significou situar a análise antropológica na intersecção entre institucionalidade estatal, modo de produção e as volições nutridas por cada ser humano a partir das suas específicas condições de existência social. Nenhuma destas três dimensões é completamente redutível à outra, sendo possível afirmar, por isso mesmo, que se reproduzem com relativa autonomia – ainda que, por vezes, se cruzem e se influenciem mutuamente–, seguindo princípios frequentemente distintos. Para utilizar a terminologia de Das e Poole (2008), de quem tomo emprestada a noção de “margens”, poderíamos dizer que cada uma dessas três esferas produtoras de racionalidades singulares encontra limites de legibilidade ao relacionar-se com as outras esferas, o que origina modalidades específicas de negociação e conflito, espaços em aberto entre a norma, a lei e o disciplinamento efetivo dos corpos. A partir desta matriz de leitura é possível dizer que, se bem a mobilidade dos/das trabalhadores/as fronteiriços intersecciona-se com o ordenamento local dos mercados de trabalho, das redes de comércio e dos investimentos de capital, o cruzamento de fronteira que eles/elas empreendem mobiliza intencionalidades que extravasam tais dinâmicas, abrindo margem à confrontação de expectativas heterogêneas em ambientes hierarquizados.

             Ao indagar sobre os itinerários de trabalho e indocumentação experienciados por distintos grupos populares estabelecidos na zona de fronteira entre Brasil e Uruguai, evidenciei que a carência de documentos nacionais potencializa as consequências da extração de valor sobre os corpos dos trabalhadores, colocando a totalidade das suas vidas em questão. Ser trabalhador indocumentado nos circuitos de deslocamento que se entretecem através da fronteira brasileiro-uruguaia implica enfrentar situações nas quais a exclusão legal suscitada pela indocumentação reforça as configurações locais da exploração do trabalho, produzindo uma constelação de efeitos de poder na qual biocapital e biopolítica se entrecruzam para originar contextos de abandono radical.


            No que resta da introdução, desenvolvo alguns esclarecimentos quanto à abrangência do campo semântico contemplado pelo conceito de biocapital que me orienta neste artigo. Como categoria analítica, biocapital tem servido a inúmeras abordagens contemporâneas que procuram enfatizar o investimento da vida – no sua acepção biológica – pela racionalidade capitalista e, especialmente, pelas dinâmicas do mercado. Biocapital, portanto, tornou-se a “moeda de troca prevalente nos intercâmbios acadêmicos em torno da união entre ciência biológica e empreendimentos com fins lucrativos” (Helmreich, 2008: 463). Referida união estaria emblematicamente expressada nos mercados de compra-venda de órgãos humanos, no fomento privado das pesquisas com células tronco, na criação e comercialização de organismos geneticamente modificados e na emergência de novas economias morais do auto-cuidado, onde a detecção de predisposições genéticas constitui o substrato para responsabilizar os sujeitos por seus futuros médicos, estimulando relações específicas entre eles e a indústria da saúde (cf. Rose, 2007; 2011). Neste sentido, as políticas da vida entrariam em simbiose com os imperativos da produção capitalista, “não simplesmente [como] uma forma de uso das coisas vivas, que se remonta até as origens neolíticas da fermentação e da agricultura, mas como uma tecnologia controlada pelo capital, um modo específico de apropriação da natureza viva [que] literalmente capitali[za] a vida” (Yoxen, 1981:112 apud Helmreich, 2008: 464).

É lícito dizer que as atuais operacionalizações do conceito de biocapital se referem, majoritariamente, ao processamento dos avanços em biologia e medicina molecular no âmbito do governo biopolítico de populações e das estratégias de produção de valor na indústria avançada. O compromisso das ciências da vida com a biotecnologia e o capital “teve um impacto significativo sobre a caracterização da existência humana e sobre o controle do seu valor (e assim, sobre a forma adotada pela própria biopolítica)” (Comaroff; Comaroff, 2013: 283) dando lugar a novos regimes de subjetivação que preconizam a atomização das experiências humanas através da produção de corpos individuais interpelados como “objetos de natureza biológica, sujeitos a um desejo atravessado pela mercadoria” (Idem:269).

Grosso modo “biocapital” emerge como conceito numa vasta literatura anglófona e, fundamentalmente, nos trabalhos produzidos pela academia estadunidense para aludir à multiplicidade de arranjos de poder e processos de subjetivação derivados das imbricações entre capital e vida. Contudo, a abordagem aqui desenvolvida se insere em outra matriz de conceptualização do biocapital, na qual o foco de interesse analítico recai, especificamente, sobre a relação capital-corpo, permitindo indagar a respeito das incidências do processo capitalista de extração de valor sobre a corporeidade viva daqueles que são incluídos nas dinâmicas produtivas enquanto trabalhadores. O sociólogo mexicano Jaime Osório é quem oferece, a partir de uma revisão crítica das proposições de Giorgio Agamben em torno do “estado de exceção”, os elementos teóricos para um desenvolvimento alternativo da noção de biocapital.

Com o objetivo de ampliar e radicalizar a noção de agambeniana “exceção”, Osorio (2006) argumenta que a emergência do homo sacer2 contemporâneo não ocorre somente quando a subtração da cidadania jurídica produz a “vida nua”, pressuposto primeiro e fundamento último da norma segundo Agamben3. A própria estrutura da cidadania – enquanto feixe ideal de direitos e deveres disponibilizados ao conjunto dos membros de um Estado –, ao fazer caso omisso da vigência de outros princípios de disciplinamento e controle mais além daqueles reconhecidos na letra da lei, habilita a exposição sistemática e cotidiana da vida dos trabalhadores e das trabalhadoras às contingências potencialmente mortíferas e frequentemente daninhas da exploração da força de trabalho:

as noções de cidadão e sua negação, o não-cidadão, não constituem o melhor suporte para estabelecer as fronteiras entre "vida autêntica" e vida  nua,  "despojada  de  todo  valor  político"  na  ordem  social capitalista.  Estas noções nos deixam presos na política não-política desdobrada pelo capital, onde a cidadania oculta que a existência do trabalhador, no seu sentido relacional primário – seja ele cidadão ou não – é que se encontra exposta no mundo do  capital. É sobre este degrau que se estabelecem variadas formas de vida nua (...) [a problematização  de Agamben  sobre  o biopoder] termina por reduzir a um certo número de homens, os não-cidadãos,  sejam eles refugiados ou migrantes, a expressão social da vida  exposta  no  capitalismo.  (...) é o trabalhador a expressão  do moderno homo sacer na sociedade regida pela lógica do capital. Sua vida nua é posta em questão a partir do momento exato em que se vê obrigado a colocar à disposição do capital não só a sua força de trabalho mas também  seu  corpo  vivente (Osorio,  2006:97).  

Osorio pode desenvolver sua perspectiva através da constatação de que, no capitalismo, é a partir da subsunção real do trabalho ao capital que a vida das pessoas é posta constantemente em questão. Isto porque, quando o trabalhador vende sua força de trabalho para benefício dos proprietários dos meios de produção, ele mobiliza toda a sua corporeidade viva, uma vez que a força de trabalho está indissoluvelmente arraigada naquele que a possui. Portanto, “ao entregar a mercadoria vendida, a força de trabalho, seu proprietário entrega, também, o plus de sua própria base material enquanto ser vivente”(Osorio, 2006:80).  Embora a vida pareça excluída do contrato – formal ou informal – de venda de força de trabalho, está nele totalmente incluída4. Esta situação permite compreender como se dá a articulação entre biopoder e produção capitalista, ajudando a iluminar quais são os meios pelos quais o poder está em condições de realmente produzir e fixar efeitos de sujeição e subordinação no contexto  do  mundo do trabalho.

A categoria biocapital permite a Jaime Osorio evidenciar que no mesmo momento em que a força de trabalho é incluída no rol das mercadorias, ela passa a ser obliterada enquanto corporeidade viva, enquanto forma de vida que transcende a esfera da produção e do mercado:

Se [a teoria da exploração de Marx] nos leva ao exame  do antagonismo  complemento capital-trabalho,  [a teoria  do  biocapital] nos  orienta  em  direção  ao  antagonismo-complemento  capital-vida. Nos termos da análise, é lícito diferenciá-las, mas, por sua vez, voltar a integrá-las como requisito para a cabal compreensão do processo (Osorio, 2006: 82).

            Este desenvolvimento alternativo do conceito de biocapitalamplia o poder evocativo da afirmação de Agamben de que a vida nua possui “o singular privilégio de ser aquela sobre cuja exclusão se funda a cidade dos homens”(Agamben, 2002: 15). A vida de muitos trabalhadores fronteiriços adquire, por vezes, o aspecto de uma “vida nua” porque se encontra exposta a um movimento de apropriação que, ao reter e exaurir sua parte “útil” – o trabalho – acaba invadindo e colocando em xeque a totalidade da experiência vivida desses sujeitos. Quando enfocamos situações de indocumentação, isto só fica ainda mais evidente, uma vez que estamos defrontados com pessoas “sem garantias”, cuja possibilidade de reivindicar uma existência plena e, no limite, resguardar a própria vida, termina condicionada, como veremos na continuação, pela hierarquia e disciplina dos estabelecimentos produtivos e pela normalização biopolítica inerente à legalidade nacional5.

            No primeiro tópico do artigo reconstruo os itinerários laborais e migratórios de Osvaldo, um dos interlocutores de minha investigação na fronteira brasileiro-uruguaia. Atento ao seu relato, procuro esboçar a complexa cartografia do poder com a qual teve que lidar ao longo da vida e no marco da qual pôde desenvolver concepções singulares sobre o sentido do trabalho, da pertença nacional e dos direitos sociais. Em seguida, avalio como a noção de biocapital, ao focalizar o antagonismo capital/corporeidade viva, pode favorecer a análise dos contextos narrados por Osvaldo. Nos apontamentos finais, sugiro que as consequências mais radicais da operatória do biocapital só podem ser adequadamente concebidas e criticadas se incluirmos em nossos quadros analíticos uma reflexão sobre como os estados nacionais administram suas tecnologias de inclusão e exclusão no horizonte do governo biopolítico de populações.

           

2. Para onde escapar? O caso de Osvaldo.

Respondendo ao objetivo epistemológico e político de alinhar a teoria social com uma crítica situada e corporizada dos sistemas de dominação desenvolvo, nos próximos parágrafos, a narrativa detalhada dos percursos migratórios, laborais e familiares de Osvaldo, trabalhador rural que tive a oportunidade de conhecer durante minha pesquisa etnográfica na fronteira entre Brasil e Uruguai.


            Desde que havia começado o trabalho de campo, no inverno de 2011, costumava passar algumas manhãs da semana em companhia de Blanca Morales, a psicóloga responsável pelo Escritório Binacional do Ministerio de Desarrollo Social (MIDES) na fronteira de Aceguá. Este escritório tem por objetivo facilitar o processo de documentação de cidadãos brasileiros interessados em regularizar sua situação migratória no Uruguai. Sempre que eu visitava sua repartição, Blanca me dava a oportunidade de não apenas presenciar diversas situações de atendimento, mas também conversar, caso desejasse, com os usuários do serviço.

Em julho de 2012, estava cumprindo meu “expediente” matinal no MIDES quando vi entrar um senhor alto, vestindo bombacha, botas e camisa social. Tinha a pele curtida pelo sol e aparentava haver passado dos cinquenta anos. Disse chamar-se Osvaldo e relatou que, ao nascer, fora registrado na cidade de Treinta y Tres, capital do departamento homônimo, localizado no leste do Uruguai. Fazia algum tempo havia perdido sua cédula de identidade e precisava da certidão de nascimento para obter uma segunda via do documento. Blanca recomendou-lhe que fosse pessoalmente até o registro civil de Treinta y Tres para requerer nova cédula. O homem esclareceu que trabalhava em uma propriedade rural brasileira e não dispunha de tempo para viajar ao interior do Uruguai; ponderou, ainda, que só estava na cidade de Aceguá naquele momento porque vinha realizar um tratamento de saúde, mas em seguida voltaria a trabalhar. A encarregada do Escritório Binacional lamentou não poder ajudá-lo nesse trâmite e reiterou que solicitasse a certidão de nascimento diretamente na localidade onde havia sido registrado.

            Antes que Osvaldo deixasse a sala, perguntei-lhe se precisava da documentação por alguma razão em especial. Ele me comentou que tinha recebido uma proposta de trabalho na Fazenda Ana Paula, mas seria impossível fazer o contrato sem os devidos papeis. Seu caso me chamou a atenção porque desde o início da pesquisa estava em busca de alguém que pudesse relatar sua experiência de trabalho naquela fazenda, conhecida pela enorme opulência e pelos conflitos laborais de que fora palco há cerca de uma década. A Fazenda Ana Paula é um grande estabelecimento pecuário de capitais brasileiros que, atraído pela “paz do campo uruguaio” — leia-se baixos índices de sindicalização, desregulamentação do trabalho rural, ausência de movimentos sociais massivos em favor da reforma agrária — e pelo baixo preço da terra6, instalou-se no departamento fronteiriço de Cerro Largo no início dos anos 2000.      Antes que Osvaldo deixasse o escritório do MIDES perguntei se ele se dispunha a oferecer-me uma entrevista para relatar suas experiências laborais na Ana Paula. Osvaldo assentiu solicitamente e observou que seria melhor conversarmos já na tarde daquele dia, porque na manhã seguinte seria internado num hospital da localidade para realizar uma operação vesicular. Anotei seu telefone e disse que ligaria depois do almoço para consultar sobre o horário mais conveniente.

            Encontrei Osvaldo por volta da uma hora da tarde na esquina da rua onde mora. Dali, caminhamos silenciosos pelo pavimento de chão batido até sua residência. Cruzamos o portão de madeira da entrada, avançamos pela lateral da construção e alcançamos a porta dos fundos, que dava acesso à cozinha de piso de cimento. Osvaldo me guiou por um corredor que levava à sala, mobiliada sobriamente: dois sofás, um de frente para o outro, uma estante de madeira na parede da esquerda e, num dos cantos à minha direita, a televisão ligada sem volume.

O homem disse que eu me acomodasse e tomou assento num dos sofás: “mas a entrevista, o que seria? Que perguntas tu queres fazer?”.  Expliquei que se tratava de uma entrevista aberta na qual gostaria que ele contasse um pouco sobre sua vida, suas primeiras experiências de trabalho, suas viagens ao Uruguai, etc.Eu nasci aqui em Aceguá [Brasil]7, em 1964. Meu pai era peão de campo (…) [eu] nasci bem na fronteira, praticamente era só o marco que dividia”. Através de uma narrativa tranquila e pausada, Osvaldo foi restaurando, ao longo daquela tarde, a memória de sucessivos deslocamentos; deslocamentos que são, de alguma forma, o percurso de construção da sua própria experiência de classe.

            Osvaldo começou a trabalhar aos doze anos de idade na fazenda onde nasceu. Logo depois, mudou-se para a casa do filho do capataz de outra estância, que havia pedido para o seu pai que “arrumasse um guri para trabalhar com ele (...) posto que vivia sozinho com a esposa, que não podia ter filhos”. Já inserido nos circuitos do trabalho rural, meu interlocutor foi desenvolvendo o gosto pelo ofício. Com o passar dos tempo, nutriu a expectativa de tornar-se funcionário de alguma estância importante, dono do seu próprio equipamento de trabalho: arreios, botas e cavalo. Ainda muito jovem, por volta dos catorze anos, decidiu tentar a sorte para os lados da cidade de Bagé8, onde tinha alguns conhecidos. Chegando à cidade, manteve contato com um proprietário rural que o acolheu amavelmente entre seus familiares e lhe propôs trabalho no interior do município de Herval (Estado do Rio Grande do Sul, Brasil), num distrito de trezentos habitantes chamado Jaguarão Chico, a quase cento e cinquenta quilômetros de Bagé. Entusiasmado, o jovem aceitou prontamente a proposta, mas terminou vivenciando um dos seus primeiros dramas laborais: “dentro da cidade [de Bagé] eles me tratavam de um jeito, mas depois que cheguei lá...”

            O patrão de Osvaldo não garantia nem o tempo de descanso nem as acomodações adequadas para se ter o que meu interlocutor considera um “mínimo de dignidade”. Não bastasse isso, jamais recebeu pagamento algum por suas tarefas: “nunca recebi nada, eles me davam roupas que eles pegavam com as outras pessoas, quando iam para Bagé. Eu não podia sair lá”.Deparado com essa situação angustiante e difícil, distante dos pais, em companhia de um proprietário desconhecido da sua família, o jovem não visualizava nenhuma saída para si. O contexto de angústia era agravado pelas constantes ameaças do patrão que “dizia que se eu saísse de lá dos campos dele, de lá de dentro da residência dele, eu não teria como achar minha família”. Depois de mais de um ano virtualmente enclausurado na propriedade de Jaguarão Chico, meu interlocutor conseguiu, finalmente, organizar um “plano de fuga” com a ajuda da filha do próprio patrão, que se solidarizara com sua situação:“não, papai não pode fazer isso contigo, como é que ele vai fazer isso contigo?”, costumava dizer a moça. Sua estratégia consistiu em dizer ao pai que iria fazer algumas compras num armazém próximo e precisava da ajuda de Osvaldo para carregar as mercadorias.

            Já no armazém, a moça tratou de convencer um caminhoneiro de passagem por ali a levar Osvaldo para a casa da sua mãe, em Bagé. Num primeiro momento, o motorista do caminhão suspeitou, pensou que isso poderia trazer-lhe algum tipo de problema, que se tratava de uma fuga por razões obscuras. A filha do proprietário esclareceu, então, o que estava acontecendo: “eu trouxe ele porque o meu pai [o] maltrata (...), às vezes é pleno meio-dia, um sol de rachar, e ele está na lavoura, ali, capinando a lavoura. Então eu quero que ele vá embora”. Convencido pelas explicações, o caminhoneiro aceitou levar Osvaldo para Bagé. Chegando à cidade, meu interlocutor foi pedindo informações às pessoas que encontrava pela rua até conseguir localizar o bairro Passo do Príncipe, onde residiam seus familiares.

Depois da dura experiência em Jaguarão Chico, Osvaldo decidiu passar alguns anos junto dos pais e utilizar as próprias redes familiares para obter trabalho: “se tu ficasses longe dos teus pais, tu já não conseguias uma boa coisa para fazer, um serviço bom. Conseguias só quem te explorava”. Após relatar sua primeira experiência de trabalho longe de casa, Osvaldo é tomado por um profundo pesar que se materializa na seguinte reflexão, pontilhada de reticências:

Bá... vou te dizer uma coisa, até hoje eu falo: amanhã  vou ser internado para me operar, mas a gente sofre, a gente passa trabalho. Sabe, tem dias, assim, que dá uma vontade de... eu mesmo, assim, como não tenho muita coisa, tenho os meus filhos, e tudo, tenho a minha esposa mas... tem dias que dá uma vontade, assim, de... principalmente agora que eu estou com esse problema aí, com essas dores, me dá vontade de sair... sabe? Sair assim, "bom, eu vou sair, não sei para onde eu vou, não sei para que lado”.


            Aos cinquenta anos de idade, com a saúde debilitada, meu interlocutor esboça certa perplexidade diante do fato de que uma vida de trabalho também é, inexoravelmente, uma vida de “passar trabalho”. Esta certeza foi se firmando na sua consciência com o passar dos anos, ao ver que, em sucessivas situações, seu bem-estar não parecia importar muito àqueles que se beneficiavam dos seus esforços físicos e habilidades produtivas. Na narrativa de Osvaldo, o direito de fuga, a possibilidade de ir embora, de evadir a exploração extrema, parece apenas postergar a rearticulação de um ciclo fatídico no qual está em jogo o esvanecimento progressivo da  própria força vital.

 De propriedade em propriedade, deste ou daquele lado da fronteira, no final das contas o drama do trabalho – ou seja, o drama do capital – se repete: o que o trabalhador troca com os proprietários é, na verdade, “toda a sua capacidade de trabalho, que ele despende, digamos, em vinte anos”(Marx, 2011[1976]: 228). Esse drama não é vivido individualmente, senão que consiste numa experiência compartilhada por famílias inteiras, já que existe um sistema de mobilização extensiva do trabalho mediante o qual esposas e filhos também acabam ingressando nas relações de produção. A esposa de Osvaldo, por exemplo, é cozinheira na mesma propriedade onde ele desenvolve o trabalho de peão. A maioria dos seus filhos estudou muito pouco, as mulheres são donas de casa e os homens em idade de trabalhar desempenham atividades assalariadas ou estão inseridos no mercado das changas9. O casal de filhos mais jovens ainda está no colégio, o rapaz de dezoito anos trabalha no comércio de Bagé. Talvez seja ele o primeiro entre os irmãos a concluir o ensino médio.

            Entre finais da década de 1970 e inícios dos anos 80, a trajetória de trabalho rural trilhada por Osvaldo conheceu um momento de inflexão. No Passo do Príncipe, onde morava em companhia da mãe, existia uma intensa mobilização esportiva que o atraiu para os campos de futebol amateur. Seu contato com este esporte foi potencializado pela chegada de um irmão de Treinta y Tres, que jogava muito bem e se somou rapidamente aos times da localidade:

Aí comecei a me interessar e tinha um homem que me disse "olha, tu é guri, tu é bem novinho, tu joga direitinho, vou te levar para um time onde fazem bons jogadores". Aí ele me levou para [a equipe do] Bagé, joguei na escolinha, fui para o juvenil e depois para os juniores.

            Depois de uma partida entre Bagé e Internacional de Porto Alegre10, os dirigentes desta última equipe propuseram a Osvaldo que fosse jogar na capital do Estado. Meu interlocutor precisou declinar do convite porque ainda era menor de idade e seus pais não estavam dispostos a conceder-lhe autorização para ir embora. Deu seguimento, então, às suas atividades no Bagé e, passados alguns meses da partida contra o Internacional, voltou a enfrentar-se nos gramados com outro grande time do Rio Grande do Sul, o Grêmio. Depois do jogo, recebeu a proposta de compor o plantel de base gremista. Desta vez já estava tudo acordado, seu pai e sua mãe dariam a anuência para que Osvaldo pudesse viajar. Contudo, no dia em que ele finalmente iria para Porto Alegre, uma dura discussão familiar levou a dissolução do casamento dos pais, impossibilitando, definitivamente, sua entrada no Grêmio. A mãe, que era uruguaia, partiu para a cidade de Melo11 e o pai fixou residência em Aceguá, onde começou a beber todos os dias até seu falecimento em decorrência de complicações associadas ao alcoolismo.

            Osvaldo, que preferiu acompanhar a mãe, não demorou muito para começar a frequentar a movimentação esportiva de Melo. Neste contexto, um sujeito que já o vira jogar em Bagé ofereceu-lhe emprego numa equipe local, proposta que foi aceita de muito bom grado. Enquanto atuava no futebol melense, meu interlocutor envolveu-se afetivamente com uma professora de educação física. A moça, que estava prestes a se mudar para o também fronteiriço departamento de Rocha, entrou em contato com uma equipe de futebol da localidade e comentou sobre o talento do seu companheiro, propiciando que ele fosse contratado por um ano.

            O talento futebolístico de Osvaldo chamou a atenção dos dirigentes de importantes equipes uruguaias, o que lhe rendeu uma oferta decisiva: tornar-se jogador do Defensor, em Montevidéu. Contudo, sua entrada para um dos clubes mais prestigiosos do país acabou barrada pelos dirigentes do time de Rocha, que exigiam de Osvaldo o cumprimento estrito do contrato de um ano, inviabilizando sua mobilidade inter-clubes. Osvaldo foi tomado pela frustração: depois de estar às portas de Montevidéu, Rocha já não tinha nenhuma graça. Decepcionado com o futebol, ele decidiu retornar para o Brasil. Separou-se da companheira, instalou-se novamente na cidade de Bagé e passou a trabalhar apenas na lida rural; em suas palavras, voltou a fazer o que “realmente sabia”. O ano era 1981.

            Osvaldo trabalhou em diversas propriedades rurais nos trinta anos subsequentes. Cerca de quatro delas encontravam-se no Brasil e outras duas, no Uruguai. Entre estas últimas, estava a Fazenda Ana Paula, na qual ele ingressou em 2005 para atuar como peão e cozinheiro. Sem possuir qualquer tipo de documentação uruguaia, meu interlocutor acordou com seus empregadores o pagamento de um salário que estaria em torno de mil e quinhentos reais. No entanto, ele nunca teve essa quantia em mãos, dado que os funcionários encarregados de administrar a folha de pagamentos, também brasileiros, realizavam cortes arbitrários nos valores pagos aos empregados. Osvaldo presume que o dono da propriedade não estava a par da situação, afinalnunca chegava perto” dos trabalhadores:

Alex: E que desculpa eles davam para pagar menos ao senhor?

Osvaldo: Eles não davam desculpa, eles sabiam que estavam dentro do Uruguai e que não iria acontecer nada. E eu só com os documentos brasileiros. Estava en negro.

            A situação de estrangeiridade social tornou-se mais aguda – e potencialmente letal – quando Osvaldo contraiu uma pneumonia “por causa do trabalho”e foi levado ao hospital de Melo. A gerência da fazenda Ana Paula colocou-o sob os cuidados de um rapaz que recebera certa soma em dinheiro para arcar com os eventuais custos do tratamento: “só que chegando lá, tu não vais acreditar, mas ele não deu [nem sequer] um café para nós tomarmos. Com todo o dinheiro que ele levou”. Meu interlocutor chegou a consultar com um médico do hospital, mas como não possuía situação migratória regular, estava impossibilitado de ocupar leitos públicos, ou seja, para realizar o tratamento da pneumonia seria necessário contratar um serviço privado. Presumivelmente, havia recursos para efetuar uma internação particular, porém, como o sujeito encarregado de assisti-lo pretendia reter para si o dinheiro disponibilizado pela empresa, absolutamente nada foi feito.

O médico de Melo optou, então, por encaminhar Osvaldo a uma doutora conhecida sua em Villa Isidoro Noblía. Esta, após fazer os exames necessários, constatou a gravidade da afecção respiratória e concluiu que, ali, seria impossível levar a bom termo qualquer procedimento terapêutico. “E pagando?”, questionou Osvaldo. “Pagandorespondeu a médicaeu te devolvo para uma clínica em Melo”. O funcionário da fazenda que acompanhava meu interlocutor solicitou à médica que receitasse os remédios necessários e comprometeu-se, ele próprio, a transferir o paciente para algum leito de internação. Como o quadro de Osvaldo era bastante grave, a doutora preferiu entrar em contato com dois colegas seus em Bagé (Brasil), para averiguar se havia possibilidade de recebê-lo nos hospitais da cidade:

[ela] disse que estava me mandando, que eu tinha documentação brasileira só que eu estava trabalhando dentro do Uruguai sem estar na caixa e sem estar, tampouco, no INSS12. Aí [os médicos brasileiros] disseram que [ela] podia me mandar e eu recebi o tratamento pelo Sistema Único de Saúde [SUS]. Fiquei baixado no hospital, me curei, tudo pelo SUS.

            Uma vez concluído o tratamento em Bagé, Osvaldo regressou à fazenda, mas foi impedido de entrar. Na beira da estrada, uma secretária veio dar-lhe a notícia estarrecedora: tinha sido “dispensado”. Meu interlocutor decidiu não ir embora, disse que queria falar pessoalmente com o gerente para esclarecer a situação. A funcionária pediu que ele entrasse e informou que o gerente retornaria apenas no final da tarde ou pela noite. Osvaldo passou o dia esperando. Chegada a hora do fechamento, continuou a espera do lado de fora, onde fez um pequeno acordo com o pessoal da segurança para que barrassem o carro do gerente e facilitassem sua abordagem.

            Interpelado por Osvaldo no meio da noite, o gerente argumentou que os postos de trabalho não podiam ficar vagos por muito tempo e faz questão de sublinhar, com relação à pneumonia, que todas as medidas cabíveis teriam sido tomadas, inclusive a cobertura dos gastos de tratamento. Meu interlocutor objetou não ter havido gasto algum. Surpreso, o gerente se propôs a resolver o assunto no dia seguinte, em sua casa, quando convocaria o funcionário encarregado dos cuidados de Osvaldo para dar explicações.

            Na reunião do outro dia, após uma longa conversa, o peão demitido conseguiu convencer a gerência da veracidade da história que contava. Recebeu, então, o valor consignado para seu tratamento de saúde e foi convidado a voltar a trabalhar na propriedade. Osvaldo, que precisava do emprego, aceitou os pedidos de desculpas e retornou à Fazenda Ana Paula. Entretanto, não muito tempo depois, conseguiu outro trabalho no Brasil, com salário estável e maiores garantias laborais. Depois de quase dez anos longe da Ana Paula, meu interlocutor está, agora, pleiteando seu reingresso como funcionário regular daquela propriedade, o que justifica a demanda pela identidade uruguaia. Segundo argumenta Osvaldo, os conflitos laborais e casos de corrupção verificados em anos pretéritos na fazenda teriam levado seus administradores a regularizar o processo de contratação de novos funcionários melhorado, assim, as condições de trabalho oferecidas.

            A experiência relatada por Osvaldo na Fazenda Ana Paula é uma oportunidade para refletir sobre como a estrangeiridade – produzida pela situação de indocumentação –, associada a pesadas rotinas laborais, ocasiona processos de margem nos quais a vida e a integridade física dos trabalhadores (trans)fronteiriços terminam colocadas em questão. O trabalho rural em geral e especificamente o ofício de peão favorecem o desenvolvimento de certas enfermidades respiratórias, ósseas e musculares debitadas da exposição à intempérie – principalmente nos meses do inverno –, do uso frequente dos cavalos e do transporte braçal de cargas pesadas – rolos de arame, postes de madeira para as cercas, galões de leite no caso dos tambos, etc. Conforme informou a secretária de saúde do Município de Aceguá, a maioria das consultas ambulatoriais locais se deve a dores na coluna, braços e joelhos. No contexto da fronteira brasileiro-uruguaia, onde as preocupações administrativas de dois estados nacionais motivam constantes esforços por discernir os doentes “deste lado” dos doentes “daquele lado” da divisa política, os problemas de saúde adquirem uma dimensão potencialmente mortífera, já que trabalhadores na situação de Osvaldo passam a depender da “boa vontade” dos superiores para garantir a integridade física dos seus corpos. Como ficou demonstrado no relato de meu interlocutor, essa “boa vontade” nem sempre existe, pois a estrangeiridade de uns pode tornar-se anteparo para o incremento da renda de outros.


            A experiência de Osvaldo na fazenda Ana Paula torna evidente uma situação na qual a exploração do trabalho e os processos de margem engendrados pelo status de não-cidadão confluem para produzir um contexto de abandono radical. Se quando estava em Jaguarão Chico –  sua primeira e traumática experiência de trabalho longe da família – meu interlocutor teve que ativar o “direito de fuga” para escapar da dilapidação cotidiana do seu corpo, na fazenda Ana Paula esse mesmo processo de dilapidação – talvez menos intensivo que o anterior – degenerou em uma enfermidade respiratória que o lançou no centro de um espaço de excepcionalidade jurídica quase inescapável. Esta espécie de “vácuo” sufocou sua agência e sua recursividade a tal ponto que elas quase desapareceram. Com a vida posta, literalmente, em questão, ele passou a depender da própria sorte – materializada na resolução da médica que decidiu enviá-lo a Bagé – para receber os devidos auxílios e, finalmente, curar-se. Vivências desta ordem convertem as relações de classe numa experiência de exceção porque, ao não possuírem documentos, é como se alguns trabalhadores transfronteiriços estivessem fora de qualquer jurisdição, é como se fossem corpos desiguais em primeira instância, posto que subordinados ao julgamento que outros farão a respeito da sua utilidade produtiva e legitimidade social.

            Os ciclos de busca de trabalho experimentados por Osvaldo desde muito jovem descrevem um itinerário de esperanças e frustrações no qual foram se consolidando determinadas percepções pessoais a respeito do que ele “realmente sabia fazer” e de quais eram as implicações inerentes o seu destino social como trabalhador (trans)fronteiriço. Destino social contornado transitoriamente nos campos de futebol, mas logo recolocado enquanto única alternativa possível em decorrência da cobiça dos dirigentes esportivos da equipe de Rocha, que tornaram insustentável qualquer perspectiva de afiançar-se como jogador profissional num clube importante.

Ao evocar a experiência do futebol, Osvaldo evidencia que os itinerários laborais subsequentes consistiram mais em escolhas do que em facticidades, pelo menos até sua condição etária clausurar definitivamente a possibilidade de realização pessoal e sobrevivência econômica nos mercados futebolísticos. As coisas poderiam ter sido diferentes, mas não foram. À época de nossa entrevista meu interlocutor tinha quarenta e oito anos de idade e suas margens de escolha profissional, bem mais exíguas do que há algumas décadas, circunscreviam-se praticamente ao trabalho rural. O impacto subjetivo desse contexto algo asfixiante me foi dado a conhecer através de enunciados paradoxais, onde o desejo irrompia ao lado da resignação e parecia, finalmente, ser consumido por esta última: “mas bá, a gente sofre, a gente passa trabalho (…) me dá vontade de sair... sabe? Sair assim, bom, eu vou sair, não sei para onde eu vou, não sei para que lado.

 

3. O antagonismo capital/corporeidade viva

Durante a maior parte da sua vida, Osvaldo dedicou-se ao ofício de peão percorrendo diferentes estabelecimentos pecuários situados em ambos os lados da fronteira brasileiro-uruguaia. Deslocando-se à procura de emprego, este interlocutor mapeou as articulações e contiguidades entre subordinação econômica e exclusão jurídica, de modo que lhe foi possível elaborar, a partir da narrativa dos seus percursos, uma crítica daqueles elementos que podem convergir para tornar a experiência do trabalho (do trabalhador) uma experiência corporizada de exceção e sofrimento, ou melhor, de sofrimento na exceção. Peregrinando às margens do estado em busca de tratamento para a pneumonia, Osvaldo vivenciou um sofrimento que nada parecia ter de sacrificial (cf. Nancy, 2003); era como uma dor sem sentido que – exterior a toda teodiceia – delata a ilegitimidade da própria ordem social que a origina.

            Mesmo nas “pacíficas” fronteiras do Mercado Comum do Sul, a exceção pode ser a regra para amplos setores sociais que se encontram expostos às consequências excludentes da imbricação entre territorialidade dos estados nacionais e territorialidade dos meios de produção — entendidas, ambas, enquanto âmbitos de vigilância e controle cuja articulação multiforme condiciona as possibilidades e os impactos da extração de valor sobre os corpos e a subjetividade do trabalhador. A noção de biocapital aqui apresentada ilumina tais processos de poder ao realçar o antagonismo capital/corporeidade viva, cujas consequências se multiplicam, atualizam e negociam em meio aos regimes de inclusão, exclusão e disciplinamento constituídos não apenas em cada estabelecimento produtivo, mas também no marco da governamentalidade estatal. Os resultados localizados e transitórios desses processos de assujeitamento definem as condições de existência do trabalhador e, mais do que isso, definem sob que condições ele irá viver todos os âmbitos da sua vida.

            Quando Osvaldo adoeceu e lhe foi negada, num primeiro momento, a possibilidade de tratamento médico, o valor de uso da sua força de trabalho acabou anulado: ele abandonou a esfera da economia política para negociar sua existência na esfera da biopolítica, à espera de uma resolução que pudesse fazê-lo viver. A explicação deste ponto demanda uma breve digressão a respeito de como se espacializam as práticas capitalistas de incremento da extração de valor.

            Quando o capital se desloca em busca de melhores condições para sua acumulação ou quando — o que dá no mesmo — trabalhadores migrantes e extra-regionais são recrutados para o desempenho de certas tarefas produtivas, configura-se uma instrumentalização pragmática das cartografias do poder soberano dos estados nacionais. Tal instrumentalização permite que a extração de valor se incremente em decorrência da modificação do estatuto jurídico-político dos trabalhadores mobilizados. Estes procedimentos explicam, em grande medida, a origem dos desenvolvimentos geográficos desiguais, ao mesmo tempo em que descrevem como enclassamento e geopolítica, ao entrelaçar-se, produzem corpos desiguais. De forma complementar, a redefinição dos dispositivos geopolíticos, biopolíticos e disciplinares manejados pelos Estados-nação também dinamiza a operatória do biocapital. A criação de novas fronteiras nacionais, ou a redefinição do estatuto de velhas fronteiras — sua abertura ou fechamento –, a intensificação sobre o controle da circulação internacional de pessoas mediante exigência de documentos, a restrição dos serviços públicos para estrangeiros, o grau de fiscalização sobre o trabalho irregular, a produção de novos sujeitos-de-direito, etc., impacta não apenas sobre o valor de uso da força de trabalho de populações inteiras, mas também sobre as garantias ao alcance das classes subalternas para resguardar suas vidas e seus modos de vida frente à incidência do biocapital.

            Tanto a economia capitalista quanto os estados nacionais assentam sua vigência na produção sistemática de margens e exterioridades (“o indocumentado”, “o trabalhador dispensável”). As clivagens impostas pelas tecnologias de governo das populações e as subordinações do enclassamento apresentam-se, frequentemente, como processos cuja articulação – tão inevitável como multiforme – reforça efeitos recíprocos de exclusão. A corporificação dessas exterioridades análogas – e por vezes homólogas – produz dramas como os de Osvaldo, que conformam o lado menos visível do atual ciclo de integração das economias nacionais no marco do Mercosul.

           

Apontamentos finais

A narrativa de Osvaldo sobre seus infortúnios na Fazenda Ana Paula descreve a operatória simultânea de um conjunto de clivagens supressivas e excludentes que a noção de biocapital permite evidenciar e problematizar. A experiência laboral de meu interlocutor em um grande estabelecimento pecuário de capitais brasileiros instalado em território uruguaio me permitiu conceber como os procedimentos desencadeados por um capitalista rural para incrementar a extração de valor em seu empreendimento podem redefinir dramaticamente as condições de existência da mão de obra estrangeira e indocumentada. Além de serem dilapidados e adoecidos em decorrência da exploração do trabalho, os corpos destes sujeitos tornam-se passíveis de abandono no âmbito das instituições encarregadas de prestar serviços de saúde no território uruguaio, realçando os efeitos recíprocos de subalternização produzidos pelo enclassamento e pela biopolítica.

            A estrangeirização via indocumentação pode converter o cotidiano binacional das classes populares na fronteira brasileiro-uruguaia em uma experiência de margem com consequências por vezes irreversíveis. Os trabalhadores rurais ou urbanos, ao cruzarem a fronteira sem documentação nacional, terminam expostos a um despojamento jurídico que abre caminho à saturação dos seus corpos pelos efeitos dilapidadores do biocapital. Estes efeitos, que são atenuados enquanto o invólucro da cidadania permanece intacto e o arsenal dos direitos jaz ao alcance da mão, reaparecem como forças letais quando o trabalhador enfermo é estrangeirizado pelos sistemas de saúde nacionais e precisa contar com a própria sorte ou com a boa vontade alheia para enfrentar o abandono radical.

            O mundo do trabalho assalariado é, em si mesmo, um contexto despótico, um espaço de exceção no qual, sob pretexto de mobilizar força de trabalho, expõe-se toda a corporeidade viva do trabalhador a um movimento de apropriação fortemente determinado pelas leis do valor instauradas nos sistemas de intercâmbio locais, regionais e mundiais. Contudo, os efeitos mais letais desse processo são produzidos, em última instância, no terreno da biopolítica, onde as possibilidades de restauração física, agenciamento jurídico ou auto-enunciação política dos trabalhadores podem estar vetadas a priori, de acordo com seu estatuto nacional.



Notas:

1    Esta investigação deu origem à dissertação de mestrado, intitulada "Nogociando às/as margens: experiências de trabalho, deslocamento, indocumentação e acesso aos serviços do Estado na fronteira brasileiro-uruguaia" (2013).

2    No antigo direito romano, homo sacer é o sujeito que, ao ser considerado sagrado depois de um julgamento por delito, termina excluído do direito divino e do direito humano, termina abandonado. Sua vida fica fora das normas religiosas e profanas, converte-se em vida nua (nuda vita).

3    Ao revisar a interpretação agambeniana sobre a figura do homo sacer, o jurista argentino Edgardo Logiudice sumariza sua relação derivativa com relação ao poder soberano de uma forma que me parece pertinente: “[o homo sacer] no pertenece a una yuxtaposición de normas religiosas y jurídicas, sagradas y profanas, sino a una estructura originaria previa a la separación de estos pares de conceptos, a la política. Por ello encuentra allí la esfera de la soberanía. La soberanía como producción de nuda vida, a través de la exclusión, del abandono que deja la vida sujeta a un bando soberano. A través de exceptuar la aplicación de normas jurídicas o religiosas, esa nuda vida queda expuesta a la violencia” (Logiudice, 2007:51). Em itálico no original.

4    As reflexões de Osório sobre o biocapital estão fortemente inspiradas no Marx do terceiro tomo dos Grundrisse, onde existe uma constante reiteração da vivacidade do trabalhador que, exposta ao movimento do capital, passa a ser dirigida a um objetivo de produção determinando, convertendo-se em valor de uso e, posteriormente, em trabalho objetivado. Para Marx, “a única coisa distinta do trabalho objetivado é o trabalho não objetivado, mas ainda se objetivando, o trabalho como subjetividade” (Marx, 2011 [1976]:212)que existe no tempo, sob a forma de um sujeito vivo para o qual o trabalho é uma possibilidade.

5    Os direitos e deveres afiançados e resguardados pelo estatuto de cidadão respondem não apenas aos imperativos de manutenção do aparato burocrático-institucional do Estado e de realização estratégica dos objetivos políticos de uma época. A cidadania jurídica, mediada, em diversos casos, pela posse de documentos de identificação, permite aos governos cuidar da vida da população e promover seu melhoramento e preservação. Estas tarefas essenciais encampadas pelos estados a partir do século XVIII transformaram a política em biopolítica, estimulando uma “progressiva redefinição do conceito de vida vegetativa ou orgânica (que coincide, agora, com o patrimônio biológico da nação)” (Agamben, 2009 [1996]: 81).

6    A crise do modelo agroexportador uruguaio e a virtual desarticulação do setor agropecuário deste país a partir da década de 1970 do século XX derrubaram os preços da terra e favoreceram sua compra por investidores estrangeiros, muitos deles brasileiros.

7    Osvaldo nasceu no Brasil mas também foi registrado pelos pais – de acordo com uma prática fronteiriça bastante difundida – no Uruguai, em Treinta y Tres.

8    Bagé é uma cidade brasileira de médio porte situada a cerca de 50km de Aceguá, na fronteira com o Uruguai.

9    O vocábulo changa alude, na fronteira brasileiro-uruguaia, à atividades laborais diversas de caráter informal, efêmero e esporádico.

10  Porto Alegre é a capital do Estado do Rio Grande do Sul, a mais austral das unidades federativas brasileiras, lindeira com os territórios da Argentina e do Uruguai.

11  Melo é a capital do departamento uruguaio de Cerro Largo, do qual faz parte a Villa de Aceguá (UY).

12  Instituto Nacional do Seguro Social.

 

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Cómo citar este artículo:

MARTINS MORAES, Alex, (2014) “Biocapital, indocumentação e experiência de classe na fronteira uruguaio-brasileira”, Pacarina del Sur [En línea], año 5, núm. 18, enero-marzo, 2014. ISSN: 2007-2309.

Consultado el Viernes, 29 de Marzo de 2024.

Disponible en Internet: www.pacarinadelsur.comindex.php?option=com_content&view=article&id=882&catid=14